Cinema Noir

Este blog retrata a história do cinema noir clássico, desde seu início em 1941 até seu fim em 1958. Não são apresentados os filmes do período proto-noir, pré-noir, filmes de gangsters e de penitenciárias, bem como os neo-noir que são produzidos até os dias atuais. Para os amantes deste gênero inesquecível!

terça-feira, 25 de outubro de 2011

O Melhor Filme Noir: O Terceiro Homem (em minha opinião)



Ficha Técnica:
Direção: Carol Reed
Produção: Carol Reed, Alexander Korda, David O. Selznick
Roteiro: Graham Greene
Música: Anton Karas
Fotografia: Robert Krasker
Edição: Oswald Hafenrichter
Distribuição: British Lion Films (UK)
Selznick International Pictures (USA)

Elenco:
Joseph Cotten... Holly Martins
Alida Valli... Anna Schmidt
Orson Welles... Harry Lime
Trevor Howard... Major Calloway
Bernard Lee... Sargento Paine
Wilfrid Hyde-White... Crabbin
Erich Ponto... Dr. Winkel
Ernst Deutsch... "Barão"  Kurtz
Siegfried Breuer... Popescu
Paul Hörbiger... Karl, carregador de Harry
Hedwig Bleibtreu... Colea de Anna

         Nas legendas iniciais o nome da grande atriz italiana Alida Valli surge apenas como Valli. Um erro que não faz juz à gandeza da atriz, do diretor e do filme. O desempenho de todos os atores é uma verdadeira aula de interpretação. Esta é uma das maiores obras primas já realizadas pelo cinema mundial.



         A direção desta obra-prima é do britânico Carol Reed, no total domínio de condução de uma película noir. Segue a mesma trilha plástica e a fotografia que já o haviam consagrado no fantástico (e também noir) Odd Man Out, filmado na Irlanda. Reed não teve uma carreira muito longa no cinema, mas o pouco que nos legou ficou eternizado como uma das melhores obras cinematográficas já realizadas.

Sinopse:
        O escritor de novelas pulp ou hard-core (novelas policiais das décadas de 1920 e 1930), Holly Martins, chega à Viena do pós-guerra, dividida em quatro setores pelos paises aliados vencedores da II Guerra Mundial. A cidade sofre o flagelo da falta de medicamentos, alimentos e todo tipo de produtos necessários para o dia-a-dia dos cidadãos. Martins chega a convite de um antigo colega de escola, Harry Lime, que lhe ofereceu emprego. Descobre então que Lime havia morrido em um acidente de trânsito, muito estranho, dentro da cidade. Ao conversar com os amigos e sócios de Lime, Martins percebe que muitos dos relatos são inconsistentes e decide descobrir, por sua própria conta, o que realmente aconteceu.

         O filme O Terceiro Homem é considerado uma das melhores películas da história do cinema, além de ser um clássico noir de rara beleza e detentor de uma fotografia como poucas vezes já se viu nas telas. Um exemplo típico da influência do expressionismo alemão na sétima arte.



       Filmado em locação, na própria Viena do pós guerra, ainda com os entulhos provocados pelos bombardeios dos aliados, as imagens são de tirar o fôlego. Reed elevou o cinema noir à sua versão mais primorosa. Sua beleza plástica é estonteante! De encher os olhos! Escrito por Graham Greene, o grande novelista britânico, produzido em 1949, o filme foi indicado para concorrer a diversos Oscar de 1950. Arrebatou a estatueta de melhor fotografia. Não sem razão! Ver links abaixo.

         O Terceiro Homem conta a estória de um psicopata americano, Harry Lime (Orson Welles) que, após a II Guerra Mundial torna-se um escroque contrabandista, incluindo medicamentos, até antibióticos, os quais dilui criminosamente em água para render mais e assim ter polpudos lucros. Uma das consequências reveladas no filme é a amputação da perna de uma criança, gangrenada após o uso de antibiótico que não tinha ação alguma, já que fora totalmente diluido, e assim levou a infecção a se alastrar. Para salvar a vida da criança os médicos tiveram de amputar sua perna.

         Uma das cenas mais chocantes e que revelam toda a crueldade do caráter psicopático de Lime é quando ele e seu amigo escritor Holly Martins se encontram clandestinamente num parque de diversões e conversam a sós. Martins questiona Lime pelos reais motivos que levaram este último a simular sua própria morte (o que Martins dolorosamente descobrira não fazia muito tempo). Num cúmulo de cinismo Lime faz uma digressão doentia sobre a liberdade e a democracia, tentando demonstrar que elas não fizeram nada de positivo para a Humanidade. Num íctus demoníaco e doentio ao extremo, Lime argumenta que uma sociedade governada pelo caos e pelo terror leva o homem à inovação muito mais do que um país governado por uma democracia pacífica. Lime pergunta o que cinco séculos de liberdade fizeram para o progresso de um país como a Suiça. E ele mesmo responde: somente o relógio Cuco. Vemos esta cena no link abaixo, o que revela toda a maldade e baixeza de um homem deturpado mentalmente e portador de uma caracteropatia monstruosa. Somente o gênio de Orson Welles para representar tão crua e cinicamente tal caracteropata.

     Um psicopata como Harry Lime não se deixa entregar quando caçado pela polícia de quatro nações vencedoras da II Guerra. Caçado como um rato pelos esgotos de Viena, ele tem a morte pela qual fez juz. Ver abaixo.

       Na cena final, apaixonado pela ex-namorada de Harry Lime, Anna Schmidt (Alida Valli), Holly Martins a aguarda na rua do cemitério onde o corpo de Lime acabara de ser sepultado. Desiste de ser levado ao aeroporto de Viena, pelo Major Calloway (Trevor Howard, em magnífica interpretação), onde tomaria o avião de volta aos Estados Unidos, na tentativa de vê-la perdoar-lhe o fato de ele, o antigo melhor amigo de Lime, ter provocado sua própria morte.



         Esta cena final de O Terceiro Homem é outra obra-prima dentro desta obra-prima cinematográfica inesquecível. A trilha sonora imortal de Anton Karas, músico vienense que viria a se tornar mundialmente conhecido devido a esta composição, tornou-se uma das trilhas mais famosas de toda a história do cinema. Tudo no filme, diretor, atores, fotografia, roteiro, trilha sonora, pertencem àquela categoria das obras eternas!





Sobre o cinema noir






  O cinema noir é considerado por alguns um gênero de filmes, por outros é considerado uma temática ou um "clima" cinematográfico. Geralmente, são filmes em preto-e-branco, de baixo orçamento (foram inicialmente chamados de filmes B), produzidos nas décadas de 1940 e 1950, fortemente influenciados pelo expressionismo alemão e com temática psicológica e psiquiátrica que enfoca crimes, investigações policiais, personalidades homicidas, psicopatas e caracteropatas, indivíduos psicóticos, esquizofrênicos, bipolares, unipolares, compulsivos diversos (compras, sexo, drogas, jogos, etc.) e todo tipo de gente inescrupulosa. 




Ella Raines em Phantom Lady (A Dama Fantasma), 
1944, de Robert Siodmak.


Dessa forma, nesses filmes há uma abundância de assaltos, roubos, sequestros, assassinatos, com a participação de personagens que vivem no submundo das grandes cidades, contraventores da lei, contrabandistas, fugitivos da justiça, com problemas policiais de toda espécie, envolvidos com o tráfico e abuso de drogas ou álcool, prostituição, corrupção em todos os estratos sociais (em particular entre políticos, grandes empresários e policiais), tráfico de pessoas e, sobretudo, são filmes carregados de mistério. Esses personagens poderiam muito bem terem sido extraídos das páginas de tratados de Psiquiatria. 


Gloria Grahame e Humphrey Bogart em In a Lonely Place
(No Silêncio da Noite), 1950, dirigido por Nicholas Ray.


Orson Welles e Charlton Heston em Touch of Evil 
(A Marca da Maldade), 1958, de Orson Welles.


      Um dos personagens mais marcantes do cinema noir é a presença da femme fatale (mulher fatal), uma mulher geralmente bela, perversa, cínica, fria e calculista, com evidente transtorno de personalidade, ora antissocial, ora narcísico, ora impulsivo-agressivo, dominadora, despótica, que leva os homens à paixão e ao seu corolário, à perdição. O clima "claro-escuro" é acentuado por uma fotografia expressionista de incrível beleza plástica. Nas figuras abaixo algumas das mais famosas femme fatales do cinema noir.


Claire Trevor em Murder My Sweet 
(Até a Vista, Querida),
1944, de Edward Dmitryk

Yvonne de Carlo e Burt Lancaster em Criss Cross (Baixeza),
1949, de Robert Siodmak.

Yvonne de Carlo e Burt Lancaster em Criss Cross 
(Baixeza), 1949, de Robert Siodmak.

Yvonne de Carlo e Burt Lancaster 
em Criss Cross (Baixeza),
1949, de Robert Siodmak.

Ava Gardner em The Killers (Os Assassinos),
1946, de Robert Siodmak.

Lizabeth Scott e Humphrey Bogart em
Dead Reckoning (1947), de John Cromwell.

Lizabeth Scott e Humphrey Bogart em
Dead Reckoning (1947), de John Cromwell

Lizabeth Scott.

Ann Savage e Tom Neal em Detour, 1945,
de Edgar G. Ulmer.

Ann Savage e Tom Neal em Detour, 1945,
de Edgar G. Ulmer.

Humphrey Bogart e Mary Astor em The Maltese Falcon
(O Falcão Maltês), 1941, de John Huston.

Mary Astor em The Maltese Falcon
(O Falcão Maltês), 1941, de John Huston.

Alice Faye e Dana Andrews em Fallen Angel 
(Anjo ou Demônio?), 1945, de Otto Preminger.

Linda Darnell e Dana Andrews em Fallen Angel 
(Anjo ou Demônio?), 1945, de Otto Preminger.

John Garfield e Marie Windson em Force of Evil 
(Força do Mal), 1948, de Abraham Polonki.

Rita Hayworth em Gilda, 1946, de Charles Vidor.

John Dall e Peggy Cummins em Gun Crazy
(Mortalmente Perigosa), 1950, de Joseph H. Lewis.

John Dall e Peggy Cummins em Gun Crazy
(Mortalmente Perigosa), 1950, de Joseph H. Lewis.

Gloria Grahame e Glenn Ford em The Big Heat
(Os Corruptos), 1953, de Fritz Lang.

Gloria Grahame em The Big Heat
(Os Corruptos), 1953, de Fritz Lang.

Jean Peters em Pickup on South Street (Anjo do Mal), 1953,
de Samuel Fuller.

Humphrey Bogart e Lauren Bacall em The Big Sleep 
(À Beira do Abismo), 1946, de Howard Hawks.

Humphrey Bogart e Lauren Bacall em The Big Sleep
(À Beira do Abismo), 1946, de Howard Hawks

Barbara Stanwick e Fred MacMurray em Double Indemnity
(Pacto de Sangue), 1944, de Billy Wilder.

Lana Turner e John Garfiel em The Postman Always Rings Twice
(O Destino Bate à Sua Porta), 1946, de Tay Garnett.

Lana Turner e John Garfiel em The Postman Always Rings Twice
(O Destino Bate à Sua Porta), 1946, de Tay Garnett.

Jean Simmons e Robert Mitchun em Angel Face
(Alma em Pânico), 1953, de Otto Preminger.

Joan Bennett e Edward G. Robinson em Woman in the Window
(Um Retrato de Mulher), 1944, de Fritz Lang.

        Os diálogos são geralmente curtos, rápidos, cínicos e sarcásticos, irônicos, agressivos. Geralmente não há heróis e muitas vezes o personagem principal tem um fim trágico ou inesperado. Existe um período do cinema pré-noir (ou proto-noir), até 1940, e outro pós-noir (ou neo-noir), cujos filmes foram produzidos depois de 1959 e continuam sendo realizados até os dias atuais. O período clássico do noir começa em 1941 com o filme The Maltese Falcon (O Falcão Maltês), de John Huston e termina em 1959 com Touch of Evil (A Marca da Maldade), de Orson Welles. Muitos estão incluídos entre os melhores filmes de todos os tempos, alguns escolhidos por unanimidade entre a crítica especializada. 






      O nome filme noir (ou cinema noir) foi criado pelo crítico francês Nino Frank, em 1946, quando teve oportunidade, pela primeira vez, de assistir a essas películas, em Paris, logo após o término da II Guerra Mundial. Durante a guerra os filmes americanos não eram exibidos na França, invadida pelas tropas nazistas, que só foi liberada pelos aliados entre agosto a novembro de 1944. O nome noir foi dado tendo em vista suas características cinematográficas: forte influência do expressionismo alemão, em que o contraste claro-escuro era a tônica, o jogo luz-e-sombra era marcante, com tomadas de cenas inusitadas, com iluminação indireta, projetando sombras intensas na parede. Entre essas tomadas clássicas está a colocação da câmera no chão filmando os personagens de baixo, ou situada no teto, abarcando uma cena panorâmica, com uma visão peculiar, ao criar um clima psicológico intenso, ou com a câmara situada em um canto do ambiente captando uma imagem de forte conteúdo dramático, a presença frequente de janelas com persianas em que a luz exterior ilumina parcialmente o ambiente e projeta as sombras das persianas nos rostos dos personagens, gerando ainda maior dramaticidade. Apesar da fotografia e cenários terem tido forte influência do expressionismo alemão, e de algumas vezes observarmos cenários fixos, estes não são necessariamente deformados como na arte cinematográfica germânica da segunda metade do século XX.


Expressionismo alemão - O Gabinete do Dr. Caligari, 1920,
de Robert Wiene.


Expressionismo alemão - O Gabinete do Dr. Caligari, 1920,
de Robert Wiene.


     Acentuando o clima noir há a temática policial e de suspense, com a presença de crimes de toda ordem, assassinatos, investigações tensas, além de, como escrevemos linhas acima, geralmente serem, em sua maioria, filmes em preto-e-branco. Algumas películas foram filmadas a cores, mas mantiveram o padrão do suspense noir. Neles encontramos personagens muitas vezes sinistros, de passado obscuro, tentando fugir deste passado que não é revelado, ou revelado em partes ou a conta-gotas até o fim. A plateia fica sempre na expectativa e o final pode ser desastroso para o personagem.

     Muitos desses filmes tiveram a decisiva participação dos cineastas germânicos e austríacos, fugidos do nazismo, a partir de 1933, com grande experiência na direção de películas expressionistas germânicas, como Fritz Lang, Robert Siodmak, Otto Preminger, Billy Wilder, Curtis Bernhardt, William Dieterle, e outros menos conhecidos (Billy Wilder e Otto Preminger eram austríacos, mas fizeram carreira na Alemanha ). Todos demonstraram a marca da genialidade em suas obras. Diretores norte-americanos nativos e outros europeus emigrados também passaram a dirigir grandes filmes, dos quais podemos citar uma verdadeira constelação deles, alguns também considerados gênios do cinema: John Huston, Alfred Hitchcock, Orson Welles, Howard Hawks, Raoul Walsh, Henry Hathaway, Elia Kazan, Jules Dassin, Edward Dmytrik, Michael Curtiz, Charles Vidor, John Brahm, John M. Stahl, Tay Garnett, Robert Wise, Joseph L. Mankiewicz, Victor Fleming, Jacques Tourneur, Sam Wood, Bretaigne Windust, László Benedek, William Keighley, Edmund Goulding, Anthony Mann, Joseph Losey, George Cukor, Douglas Sirk, Jean Negulescu, Robert Montgomery, John Cromwell, Delmer Daves, Anatole Litvak, Lewis Allen, Ted Tetzlaff, e outros. 


John Huston (1906-1987)

Fritz Lang (1890-1976)

Robert Siodmak (1900-1973)

Billy Wilder (1906-2002)

Jacques Tourneur (1904-1977)


Nicholas Ray (1911-1979)

Orson Welles (1915-1985)

      Nino Frank, em sua primeira análise publicada em jornais parisienses, em 1946, dizia que “...esses filmes pertencem ao que era conhecido como gênero de filmes de detetives, e de hora em diante seria melhor chama-los estórias e aventuras de crimes, ou, melhor ainda, de psicologia criminal” (Borde e Chaumeton, p.1). 

     Os primeiros filmes que os franceses assistiram de meados de 1946 a início de 1947 foram: The Maltese Falcon (O Falcão Maltês - John Huston), Laura (Laura - Otto Preminger), Murder My Sweet (Até a Vista Querida - Edward Dmitryk), Double Indemnity (Pacto de Sangue – Billy Wilder) e The Woman in the Window (A Mulher do Quadro - Fritz Lang). Poucos meses depois, os filmes, This Gun for Hire (Alma Torturada - Frank Tuttle), The Killers (Assassinos - Robert Siodmak), The Lady in the Lake (A Dama do Lago - Robert Montgomery), Gilda (Gilda - Charles Vidor), The Big Sleep (À Beira do Abismo - Howard Hawks), obrigaram o publico a aceitar a ideia do nome de filme noir. Uma nova “série” estava emergindo na história do cinema, segundo Borde e Chaumeton.

      O nome consagrou-se definitivamente como filme ou cinema noir apenas em 1955, quando dois críticos de cinema, também de Paris, Raymond Borde e Etienne Chaumeton, publicaram o primeiro livro sobre este gênero cinematográfico cujo título é A Panorama of American Film Noir – 1941-1953 (tradução para o inglês), editado em San Francisco, pela City Light Books. Tornou-se um clássico sobre o tema e referência obrigatória de todos os autores subsequentes que publicaram (e continuam publicando sobre o cinema noir). Este tipo de filme tornou-se objeto de veneração por parte de milhares de pessoas por todo o mundo. Atualmente, há nas cidades de Los Angeles e San Francisco, nos Estados Unidos, um festival anual de cinema noir patrocinado pela Film Noir Foundation, uma entidade independente dos grandes estúdios americanos.






                               


      A temática psiquiátrica e/ou psicológica nesses filmes domina praticamente toda a sua produção histórica. Em uma obra muito importante sobre o cinema noir, dois autores espanhóis, Carlos F. Heredero e Antonio Santamarina, intitulada El Cine Negro – Maduración y crisis de la escritura clássica, publicada em Barcelona pela Editora Paidós, em 1996, fazem uma análise artística, sociológica, cultural, política e psicológica dos tempos em que vicejou o cinema noir. Tornou-se também outra obra de referência sobre o tema. Dentre alguns fatores apontados por eles para o surgimento desse gênero cinematográfico podem ser citados:

1- Do ponto de vista histórico, o caldo de cultura que propiciou o surgimento da corrupção em larga escala e da criminalidade por todos os estratos sociais nos Estados Unidos das décadas de 1920 e 1930, vieram associados ao enfraquecimento do Neal Deal (a política de recuperação econômica americana após o crash da bolsa de 1929, estabelecido pelo governo de Franklin Delano Roosevelt) o que deteriorou a estrutura da sociedade norte-americana. Em seguida, os acontecimentos que levaram os americanos à premonição da II Guerra Mundial foram o pano de fundo das mudanças cinematográficas que já vinham acontecendo em Hollywood. O mundo do cinema já tinha passado pela fase dos filmes de gângsteres, pela fase dos filmes de penitenciárias e de detetives, onde, após muitas críticas de parte da sociedade e de entidades religiosas e políticas que apontavam uma perigosa proximidade entre a delinquência social e a criminalidade cinematográfica, Hollywood se viu sob fogo cerrado que ameaçava seus negócios. Havia até quem apontasse uma certa apologia ao crime, notadamente durante o período da Lei Seca, feita por certos estúdios hollywoodianos. Havia a necessidade, portanto, de mudança de rumos, no sentido de roteiros que enfatizassem o princípio de que o crime não compensa, o criminoso teria de ser punido no cinema pela morte ou pela permanência na penitenciária, não havia lugar para tolerância para com aqueles que viviam à margem da lei. Passou-se a valorizar a figura do policial honesto em luta contra os policiais corruptos, marca registrada das eras cinematográficas hollywoodianas anteriores. O povo estava sedento de vingança contra os bandidos, os fora-da-lei, os escroques, contrabandistas, corruptores e corruptos, vigaristas e, principalmente, contra aqueles que manifestassem caráter psicopático. Mas isso começou a ser feito de uma forma muito peculiar que gerou um gênero cinematográfico sui-generis. Nem sempre havia a vitória do bem, mas é certo também que o mal não poderia triunfar (Heredero e Santamarina, p.205).

2- Havia a necessidade de um distanciamento entre a realidade histórica e sua representação mítica em termos narrativos. É exatamente essa representação, os modos e a linguagem pela qual ela se expressa, que configuraram a grande diferença e o desafio que o cinema noir mantem frente ao conjunto da produção clássica dos grandes estúdios hollywoodianos nos períodos anteriores. Os autores citam David Bordwell que as denominou de “pautas de não-conformidade”, que questionam ou se opõem aos valores dramáticos, morais, narrativos e estéticos do cinema dominante e que rompem também com os moldes e com as estruturas mantidas pela série criminal da década anterior. Essas pautas dissidentes seriam identificadas com (p.205):

a-   Ruptura da causalidade psicológica,
b-   Desafio à predominância masculina no romance heterossexual,
c-   Ataque à motivação do “final feliz”,
d-   Crítica à técnica e ao estilo clássicos.

Quanto ao primeiro ítem, a autoconsciência existencial dos protagonistas e a proliferação de assassinos atraentes, policiais venais, heróis desorientados, violência gratuita e ações confusas são alguns dos fatores que subvertem as convenções clássicas na definição psicológica dos personagens e no ordenamento lógico da ação.

O segundo, conforme Heredero e Santamarina dizem (p.206), 

"...o desafio que introduz a expressão da sexualidade feminina como elemento perturbador da segurança masculina – aqui entra a figura da femme fatale (mulher fatal) – enfrenta os homens com uma incerteza psicológica e de objetivos, tanto sexuais como emocionais, que, até então, era patrimônio quase exclusivo da representação cinematográfica tópica do universo das mulheres”. Aqui, o cinema noir quebra a firmeza característica do herói masculino, bem como pode ser visto, paradoxalmente, como uma incisão de caráter subversivo na caracterização cinematográfica tradicional dos papeis sexuais". 

O terceiro ítem, referente à dificuldade para impor desde fora e, especialmente, para encontrar no âmago das histórias o “final feliz” estereotipado é uma consequência natural de uma construção dramática que minou, previamente, toda confiança na restauração dos valores morais dominantes e que atribuiu aos seus contrários de forma tal que aparecem como poderosos, atraentes ou irresistíveis para a natureza humana. A estrutura e os mecanismos geradores de sentido dinamitam, no cine noir, a motivação lógica ou sequencial da qual necessita o “happy ending” (Heredero e Santamarina, p.206).

No quarto e último item, Heredero e Santamarina (p.206), citando Bordwell (1985) sugerem que:

“A introdução de procedimentos de caráter narrativos de caráter subjetivo (voz em off, flash-backs, pontos de vista identificados com a câmera, etc.) e o desdobramento de um estilo impregnado de inestabilidade visual, baseada sobre composições de leitura ‘borrada’ (tanto por sua iluminação como pela natureza dos enquadramentos), tornam incompatíveis estas ficções com o desenvolvimento convencional ou previsível das histórias e, sobretudo, ‘desafia a neutralidade e a invisibilidade’ do estilo clássico.

Num preâmbulo ao clássico de Borde e Chaumeton, o crítico norte-americano James Naremore (p. XIV) faz uma interessante análise dessa obra seminal:

Em outros momentos no Panorama, todavia, Borde e Chaumeton tratam o filme noir como se pudesse ser definido como um estilo artístico ou um fenômeno sociológico. Algumas vezes eles o fazem parecer menos como uma série frouxamente conectada do que como uma representação anti-gênero representando o outro lado da face de Hollywood. Eles acentuam, por exemplo, que diferentemente dos típicos procedimentos policiais, o noir é frequentemente colocado do ponto de vista do criminoso, que algumas vezes desperta nossa simpatia. Mesmo quando o personagem central está do lado correto da lei, ele é frequentemente um policial corrupto, um detetive particular de moralidade ambígua, ou o “homem errado” acusado de um crime. (Alfred Hitchcock especializou-se no último desses tipos, até seu mais conhecido show de televisão do tipo noir, na década de 1950, que pavimentou o caminho para Psicose (1960). Em quase todos os níveis, como Borde e Chaumeton demonstram, o filme noir inverte as fórmulas de Hollywood: em lugar de fazer narrativas diretas com personagens claramente identificados, ele nos dá ações complicadas, impregnada de por figuras ambíguas cuja psicologia pode ser enigmática; em lugar de heróis firmes, ele oferece protagonistas de meia-idade e “não particularmente bonitos”, que sofrem, antes do final feliz obrigatório, “surras estarrecedoras”, e no lugar de heroínas virginais ou domesticadas, ele apresenta um leque de femmes fatales, descendentes modernas da Julieta de Sade, que contribuem para uma preponderante “erotização da violência”. 

Naremore continua sua análise da visão de Borde e Chaumeton, assinalando que “toda essa incoerente brutalidade cria algo semelhante a um sonho". Muitos dos filmes noir são dedicados aos sonhos, ou ficam nas margens dos sonhos, em uma área limítrofe de escuridão, memória e desejo frequentemente representados através de flashbacks e narrativas em primeira pessoa (Borde e Chaumeton, p. XVI).

Continuam esses dois grandes críticos franceses em sua descrição das características marcantes do noir (1955, p.5):

“É a presença do crime que dá ao filme noir sua mais destacada estampa. ‘O dinamismo da morte violenta’, como Nino Frank observara, é levada à sua mais expressiva excelência. Chantagem, roubo de informações, furto ou tráfico de drogas pavimentam a estrada de uma aventura cujo limite final é a morte. Poucas séries na história do cinema têm, em apenas sete ou oito anos, acumulado tantos atos terríveis de brutalidade e assassinato. Sórdida ou estranha, a morte sempre emerge no fim de uma jornada tortuosa. O filme noir é um filme da morte, em todos os sentidos da palavra”.

O cinema noir tem suas bases na literatura nos grandes livros de ficção de Edgar Allan Poe e Conan Doyle, no século XIX.


Edgar Allan Poe (1809-1849)


Arthur Conan Doyle (1859-1930)

Sua influência mais próxima vem dos folhetins extremamente populares das décadas de 1920 e 1930 sobre histórias de detetives, crime, mistério e suspense, cujo primeiro autor foi Dashiell Hammett, cujos primeiros textos surgiram por volta de 1925. Ele é considerado o criador, na nova literatura americana, de textos que lembram os de Georges Simenon na língua francesa (o criador do famoso inspetor Maigret). Foi Hammett quem escreveu o folhetim, depois transformado em roteiro cinematográfico para um filme noir de capital importância: The Maltese Falcon (O Falcão Maltês), de 1944. Tais folhetins receberam o nome de hard-boiled (ovos cozidos duros), em função de sua temática detetivesca,  de mistério, suspense e crime. 


Dashiel Hammett (1894-1961)

Outro autor de folhetins também teve influência marcante no roteiro dos filmes noir: W.R. Burnett, autor de, entre outros, dos roteiros de Little Caesar (Alma no Lodo, um filme de gângsteres de 1930), e The Asphalt Jungle (O Segredo das Jóias), de 1950. 


Willian Riley Burnett (W. R. Burnett)
(1899-1982)

Um nome fundamental dentre todos os escritores e roteiristas foi James M. Cain que, além de ser considerado um dos fundadores do gênero, escreveu os clássicos Double Indemnity (já citado) e The Postman Always Rings Twice (O Carteiro só Toca Duas Vezes, de 1945, um clássico sob a direção de Gay Tarnett). 

James M. Cain (1892-1977)

Raymond Chandler também foi outro escritor e roteirista extremamente talentoso e responsável por obras imortais como The Lady in the Lake (A Mulher do Lago - Robert Montgomery), The Big Sleep (À Beira do Abismo - Howard Hawks), The Blue Dahlia (A Dália Azul - George Marshal). Foi também o responsável por adaptações clássicas como as de Double Indemnity (escrito por James M. Cain) e Strangers on a Train (Pacto Sinistro - Alfred Hitchcock). Jonathan Latimer foi também outro autor de roteiros de importância. 


Raymond Chandler (1888-1959)

Escritores, como Graham Greene e Eugene O'Neil, tiveram não apenas suas obras adaptadas para o cinema noir, como também trabalharam como roteiristas. Graham Greene legou-nos o roteiro daquele que considero o melhor noir de todos os tempos: O Terceiro Homem.


Grahan Greene (1904-1991)

Eugene O'Neil (1888-1953)


Enfim, o cinema noir é a quintessência da psicopatologia aplicada à sétima arte. Uma verdadeira seleção de personagens inesquecíveis, de caráter profundamente patológico, que podem nos seduzir no sentido da admiração e da cumplicidade, mas também para a repulsa, o ódio ou o pavor. Aqueles que se interessam pela conexão psiquiatria e cinema não podem deixar de conhecer essas obras-primas, agora pertencentes à história universal da sétima arte.


Fontes:

1- Borde, Raymond e Chaumeton, Etienne. A Panorama of American Film Noir. 1941-1953. Translated from the French by Paul Hammond. San Francisco. City Light Books, 2002.

2- Heredero, Carlos e Santamarina, Antonio. El Cine Negro. Maduracion y crisis de la escritura clásica. Barcelona. Editorial Paidós, 1996.